‘Vingança Sabor Cereja’ é o experimento de body horror mais radical que a Netflix já produziu — e aparentemente quer esquecer. Analisamos por que esta série de 2021 sobre trauma, ambição e transformação corporal merece ser redescoberta, especialmente agora que ‘A Substância’ provou que o gênero tem público.
Existe um tipo de série que a Netflix parece ter vergonha de admitir que fez. ‘Vingança Sabor Cereja’ é exatamente isso: um experimento de 2021 tão radical, tão deliberadamente repulsivo, que a plataforma aparentemente decidiu fingir que nunca aconteceu. Sem segunda temporada, sem marketing retroativo, sem aparecer nas listas de “melhores séries de terror”. Apenas oito episódios flutuando no catálogo como um segredo que ninguém deveria ter descoberto.
E talvez seja exatamente por isso que precisamos falar sobre ela.
O que ‘Vingança Sabor Cereja’ faz que nenhuma outra série da Netflix ousa fazer
A Netflix construiu um catálogo de terror impressionante na última década. Ghost stories góticos, thrillers psicológicos, slashers, found footage — tudo está lá. Mas body horror, aquele subgênero que transforma o corpo humano em fonte primária de repulsa e fascínio? Isso a plataforma evita como se fosse contagioso.
‘Vingança Sabor Cereja’ não evita nada. Desenvolvida por Nick Antosca (o mesmo criador de ‘Channel Zero’ e ‘Chucky’) e Lenore Zion, a série chegou em agosto de 2021 sem alarde e imediatamente se posicionou como uma das experiências de horror corporal mais confrontacionais já feitas para televisão. Não estou exagerando. Nos primeiros vinte minutos do episódio piloto, você já entende que desconforto físico não é efeito colateral — é o objetivo declarado.
A protagonista Lisa Nova (Rosa Salazar, de ‘Alita: Anjo de Combate’) é uma cineasta cuja ambição e raiva a empurram para território cada vez mais grotesco. Seu corpo se torna campo de batalha, repetidamente violado por forças que ela só parcialmente compreende. A série trata essas violações como extensões de trauma emocional, fazendo cada momento de horror físico parecer perturbadoramente inevitável — não gratuito, mas consequência.
E aí vem a cena dos gatinhos.
Sim, pessoas vomitam gatinhos — e isso faz sentido narrativo
A imagem mais infame de ‘Vingança Sabor Cereja’ envolve personagens literalmente vomitando filhotes de gato. Parece absurdo descrito assim. Parece gratuito. Mas quando você assiste — especificamente no episódio 3, “Strawberry Lemonade” — percebe que a série não está interessada em choque pelo choque. A câmera não pisca. Ela permanece ali, tempo suficiente para garantir que a repulsa se instale, mas também tempo suficiente para você entender o que está sendo dito sobre fertilidade, criação e controle corporal.
O que separa esta série de horror mais convencional movido a gore é seu compromisso com transformação em vez de violência pontual. A dor é prolongada. As consequências são permanentes. A autonomia corporal é repetidamente arrancada. O horror não está na morte súbita, mas em viver dentro de um corpo que não parece mais seu — algo que Cronenberg explorou em ‘A Mosca’ e que Julia Ducournau levou ao extremo em ‘Titane’.
Mesmo momentos mais quietos estão saturados de desconforto corporal. Há uma cena no episódio 5 onde Lisa simplesmente olha para suas próprias mãos por quase um minuto inteiro. Nada acontece visualmente. Mas a trilha sonora — um zumbido grave, quase subliminar — e a forma como Salazar transmite dissociação através de micro-expressões faciais criam uma sensação de que algo está errado sob a pele. Essa tensão constante impede que a série jamais pareça segura.
Body horror como crítica a Hollywood — e funciona
Apesar de sua reputação de extremidade, ‘Vingança Sabor Cereja’ nunca perde de vista sobre o que realmente está falando. A série usa body horror como lente para explorar abuso sexual, exploração e a busca corrosiva por sucesso dentro de Hollywood. Seus momentos mais perturbadores estão diretamente amarrados a esses temas — nada é grotesco apenas por ser grotesco.
A jornada de Lisa começa com traição e abuso nas mãos de Lou Burke (Eric Lange, de ‘Lost’), um produtor poderoso que transforma sua posição em arma. A série, lançada no mesmo ano em que o julgamento de Harvey Weinstein ainda dominava manchetes, trata essa violação com gravidade documental, permitindo que suas consequências emocionais moldem tudo que vem depois. Vingança se torna mecanismo de enfrentamento, não fantasia de empoderamento.
A degradação física que Lisa sofre espelha como sua ambição consome seu senso de identidade. Cada transformação grotesca — e são várias, escalando em intensidade — reflete um compromisso moral feito em busca de controle e reconhecimento. Os visuais de body horror externalizam dano interno, tornando o trauma impossível de ignorar ou racionalizar.
Hollywood é retratada como predatória e vazia, mas não de forma caricata. As promessas da indústria de realização criativa mascaram sistemas que trituram pessoas — particularmente mulheres jovens com talento e ambição. O body horror amplifica essa crítica, transformando metáfora em algo dolorosamente, visceralmente literal.
Por que a Netflix parece ter esquecido que fez isso
O catálogo de terror da Netflix é inegavelmente forte. As várias séries de Mike Flanagan — ‘A Maldição da Residência Hill’, ‘Missa da Meia-Noite’, ‘A Queda da Casa de Usher’ — se destacam em slow burns emocionais e pavor gótico. O tesouro de séries coreanas de horror (‘Se Eu Não Tivesse Te Conhecido’, ‘Hellbound’, ‘Parasita: A Série’) frequentemente se inclina para suspense, tragédia e violência súbita. Essas abordagens são eficazes, mas raramente engajam com a extremidade física que define body horror.
‘Vingança Sabor Cereja’ prospera no desconforto sustentado em vez de apenas tensão com alívio. Não constrói em direção a catarse; sustenta mal-estar. Isso a torna mais difícil de assistir em maratona, mas também mais difícil de esquecer. Poucas originais Netflix estão dispostas a alienar espectadores tão deliberadamente — e talvez esse seja o problema comercial.
Quase quatro anos após seu lançamento, a Netflix não tentou outra série de terror que abraça transformação corporal com intensidade similar. Dado os recursos da plataforma e o sucesso recente de ‘A Substância’ (2024), que provou que body horror pode ser tanto aclamado pela crítica quanto comercialmente viável, essa ausência parece menos cautela estratégica e mais oportunidade perdida. Body horror é singularmente adequado para narrativa serializada — formatos longos permitem que transformações se desenrolem gradualmente, aprofundando seu impacto psicológico de formas que longas-metragens não conseguem.
O legado silencioso de uma série que merecia mais
O status de culto de ‘Vingança Sabor Cereja’ sugere que existe audiência faminta por esse tipo de horror. Em fóruns como r/horror no Reddit e em comunidades de Letterboxd, fãs que querem algo mais estranho e confrontacional que sustos convencionais ainda apontam para esta série como referência obrigatória. A série mantém nota 7.0 no IMDb com base em avaliações de espectadores que claramente sabiam onde estavam se metendo.
A plataforma frequentemente se posiciona como lar para narrativas ousadas. Revisitar o espaço que ‘Vingança Sabor Cereja’ conquistou reforçaria essa identidade. Terror televisivo está em seu momento mais excitante quando assume riscos, e poucos riscos são tão potentes quanto body horror bem executado — pergunte a qualquer pessoa que assistiu ‘The Fly’ de Cronenberg ou ‘Tusk’ de Kevin Smith.
Se você tem estômago para isso — e eu realmente preciso enfatizar o “se” — ‘Vingança Sabor Cereja’ permanece como lembrete do que a Netflix pode alcançar quando abraça o grotesco em vez de fugir dele. Oito episódios. Nenhuma continuação. E uma das experiências de horror mais singulares que a plataforma já produziu, esperando ser redescoberta por quem está disposto a ir além do confortável.
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Perguntas Frequentes sobre ‘Vingança Sabor Cereja’
Onde assistir ‘Vingança Sabor Cereja’?
‘Vingança Sabor Cereja’ está disponível exclusivamente na Netflix. A série foi lançada em agosto de 2021 e permanece no catálogo da plataforma.
Quantos episódios tem ‘Vingança Sabor Cereja’?
A série tem 8 episódios de aproximadamente 30 minutos cada. Não houve renovação para segunda temporada, então a história é contida em uma única season.
‘Vingança Sabor Cereja’ é muito pesada?
Sim. A série contém body horror explícito, temas de abuso sexual, violência gráfica e imagens perturbadoras. É classificada para maiores de 18 anos e não é recomendada para quem tem sensibilidade a conteúdo visceral ou gatilhos relacionados a trauma.
Quem criou ‘Vingança Sabor Cereja’?
A série foi criada por Nick Antosca (conhecido por ‘Channel Zero’ e pela série ‘Chucky’) e Lenore Zion. Rosa Salazar (‘Alita: Anjo de Combate’) protagoniza como Lisa Nova.
‘Vingança Sabor Cereja’ vai ter segunda temporada?
Não. A Netflix não renovou a série para uma segunda temporada. A história foi concebida como limitada e, apesar do status de culto, não há planos anunciados de continuação.

