Analisamos como ‘O Testamento de Ann Lee’ resgata a fundadora dos Shakers através de uma performance visceral de Amanda Seyfried. Entenda por que este musical atípico de Mona Fastvold é um dos dramas históricos mais importantes e tecnicamente rigorosos do ano.
Existe um tipo de apagamento histórico que é quase mais cruel do que a destruição deliberada: o esquecimento por indiferença. Quando a diretora Mona Fastvold descobriu que a ala americana do Metropolitan Museum of Art dedica uma sala inteira aos Shakers sem sequer citar Ann Lee — a mulher que fundou o movimento —, ela entendeu que tinha um filme necessário em mãos. ‘O Testamento de Ann Lee’ nasce dessa urgência de resgatar uma líder espiritual do século XVIII antes que sua história fosse definitivamente silenciada.
Um resgate histórico que recusa a hagiografia
O filme chega aos cinemas com impressionantes 90% de aprovação crítica, mas reduzir a obra a “mais um drama de época” é ignorar a audácia de Fastvold. A cineasta, que já havia explorado a repressão feminina em ‘The World to Come’, constrói aqui um híbrido raro: um musical que recusa o espetáculo e uma cinebiografia que evita transformar sua protagonista em santa. O que vemos é uma mulher de carne, osso e contradições.
Ann Lee fugiu da Manchester industrial para os Estados Unidos após ser perseguida por suas práticas religiosas singulares — que envolviam cantos, danças e tremores extáticos (daí o termo Shakers). O filme captura com precisão a ironia trágica do movimento: uma religião baseada no celibato estrito que, por rejeitar a reprodução biológica, escolheu conscientemente o caminho para sua própria extinção. Hoje, restam apenas três Shakers vivos no mundo, e o filme de Fastvold serve como um epitáfio vibrante para essa filosofia.
Amanda Seyfried: A voz como ferramenta de sobrevivência
No papel-título, Amanda Seyfried entrega o que já é considerado o trabalho mais visceral de sua carreira. A comparação que a atriz faz com seu papel em ‘Mamma Mia!’ é curiosa, mas técnica: enquanto Sophie cantava por celebração, Ann Lee canta por necessidade vital. Não há o polimento de um estúdio de gravação; a voz de Seyfried emana das entranhas, capturando a urgência de quem usa o som para acessar o divino e suportar a dor física da perseguição.
Um dos pontos altos da produção é o rigor técnico com o dialeto. Seyfried e Lewis Pullman (que interpreta seu irmão, William) trabalharam com a coach Tanera Marshall para recriar um sotaque de Manchester do século XVIII que não existe mais. Essa busca pela autenticidade fonética, aliada à trilha sonora crua de Daniel Blumberg, retira o filme do lugar comum dos dramas de época açucarados e o aproxima de um realismo quase documental.
A estética do silêncio e do mobiliário
A direção de arte merece atenção especial ao traduzir a filosofia Shaker para a tela. Conhecidos pelo minimalismo funcional e pela arquitetura limpa, os espaços habitados por Ann Lee no filme refletem sua busca por ordem em um mundo caótico. Fastvold utiliza a luz natural de forma quase dogmática, evocando o trabalho de diretores como Terrence Malick, mas com uma crueza que é própria de seu estilo.
O elenco de apoio, liderado por Thomasin McKenzie, traz a vulnerabilidade necessária para humanizar a comunidade. McKenzie admitiu em entrevistas o terror de cantar sem o suporte de uma orquestra, e essa insegurança real transparece na tela, fortalecendo a tese do filme de que a fé Shaker era, acima de tudo, um ato de exposição e coragem coletiva.
Por que assistir ‘O Testamento de Ann Lee’?
O filme não tenta converter o espectador, nem pede admiração incondicional por sua protagonista. Seu maior mérito é o questionamento sobre quem escreve a história e quem é deixado à margem. Em um ano marcado por grandes cinebiografias, esta se destaca por não ser sobre a glória, mas sobre a permanência de uma ideia através do sacrifício pessoal.
Se você busca uma performance que redefine uma atriz e uma direção que trata a história com a gravidade que ela merece, ‘O Testamento de Ann Lee’ é obrigatório. Preste atenção na sequência final: o canto de Seyfried não é performance; é o som de uma mulher se recusando a ser esquecida.
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Perguntas Frequentes sobre ‘O Testamento de Ann Lee’
‘O Testamento de Ann Lee’ é baseado em uma história real?
Sim. O filme retrata a vida de Ann Lee (1736-1784), a líder religiosa que fundou a Sociedade Unida de Crentes na Segunda Aparição de Cristo, conhecidos como Shakers, e sua migração da Inglaterra para os Estados Unidos.
Amanda Seyfried realmente canta no filme?
Sim, todas as performances vocais de Amanda Seyfried e do elenco foram gravadas de forma crua, muitas vezes no set, para capturar a autenticidade dos hinos Shaker sem o polimento de musicais tradicionais.
Quem são os Shakers e eles ainda existem?
Os Shakers são uma seita cristã conhecida pelo celibato, vida comunitária e design minimalista. Devido à regra do celibato, o grupo quase se extinguiu; atualmente, restam apenas três membros ativos na comunidade de Sabbathday Lake, nos EUA.
O filme é um musical tradicional como ‘Mamma Mia!’?
Não. Embora o canto seja central na trama, ele é tratado como parte do ritual religioso e da expressão emocional dos personagens, sem as coreografias ou interrupções narrativas típicas dos musicais da Broadway.
Qual é a classificação indicativa e onde assistir?
O filme estreou em circuito limitado em dezembro de 2025. A classificação indicativa sugerida é de 14 anos, devido a temas de perseguição religiosa e intensidade emocional.

