De ‘Mulher-Maravilha’ a ‘Thunderbolts*’, analisamos por que Hollywood trata sucessos de filmes de super-heroínas como exceção e fracassos como regra — e como essa lógica desigual limita um gênero que poderia ser muito maior.
Existe um padrão curioso em Hollywood quando o assunto é filmes de super-heroínas: a indústria parece incapaz de aprender com seus próprios erros — e, mais frustrante ainda, com seus acertos. Enquanto heróis masculinos recebem trilogias, universos expandidos e segundas chances infinitas, personagens femininas operam sob uma lógica cruel: um fracasso e a categoria inteira é declarada “arriscada demais”.
Essa dinâmica explica por que demoramos décadas entre ‘Supergirl’ de 1984 e ‘Mulher-Maravilha’ de 2017. Explica também por que, mesmo após o bilhão de dólares de ‘Capitã Marvel’, a Marvel parece ter perdido o rumo com suas protagonistas femininas. A história dos filmes de super-heroínas não é apenas sobre cinema — é sobre como Hollywood distribui risco e recompensa de forma desigual.
O deserto dos anos 2000: quando Hollywood desistiu antes de tentar
‘Mulher-Gato’ e ‘Elektra’ são frequentemente citados como prova de que “filmes de super-heroínas não funcionam”. O argumento é conveniente, mas ignora o óbvio: ambos os filmes eram ruins. Não ruins porque tinham protagonistas femininas — ruins porque tinham roteiros fracos, direção confusa e zero respeito pelo material original.
‘Mulher-Gato’ transformou Selina Kyle, uma das personagens mais complexas do universo Batman, em uma história genérica sobre cosméticos malignos. Pitof, vindo de efeitos visuais, parecia mais interessado em câmera girando 360 graus do que em construir uma protagonista crível. ‘Elektra’ desperdiçou Jennifer Garner em um spin-off que ninguém pediu de um ‘Demolidor’ que ninguém gostou. O fracasso não foi do gênero. Foi de execução.
Mas Hollywood não lê nuances. Leu números. E os números disseram: “mulheres não vendem”. Por mais de uma década, essa foi a narrativa oficial — enquanto ‘O Lanterna Verde’ fracassava com Ryan Reynolds e ninguém questionava a viabilidade de homens como protagonistas.
‘Mulher-Maravilha’ e a prova de que o problema nunca foi o gênero
Quando Patty Jenkins entregou ‘Mulher-Maravilha’ em 2017, o filme fez mais do que arrecadar 822 milhões de dólares. Ele demoliu um mito. Com 93% no Rotten Tomatoes e uma recepção que salvou o DCEU de si mesmo após ‘Batman vs Superman’ e ‘Esquadrão Suicida’, Diana Prince provou que audiências estavam famintas por heroínas — desde que alguém se desse ao trabalho de fazer um bom filme.
A cena de No Man’s Land não se tornou icônica por acidente. Gal Gadot atravessando as trincheiras, desviando balas, avançando sozinha enquanto soldados paralisados a observam — aquilo era catarse pura. Era a representação visual de décadas de espera. Matthew Jensen, o diretor de fotografia, filmou a sequência com luz natural filtrada por fumaça, criando uma textura quase pictórica que elevava o momento de ação a algo próximo de pintura renascentista.
O filme seguia a estrutura clássica de ‘Capitão América: O Primeiro Vingador’ — período de guerra, peixe fora d’água, sacrifício final — e isso não é coincidência. Jenkins sabia que a fórmula funcionava. O que ela adicionou foi uma perspectiva genuinamente diferente sobre poder e compaixão: Diana não luta apesar de amar a humanidade, mas porque a ama.
O tropeço inevitável: quando o sucesso vira complacência
‘Mulher-Maravilha 1984’ é o tipo de sequência que faz você questionar se alguém assistiu ao primeiro filme. Onde o original era focado e emocionalmente honesto, a continuação era dispersa e tonalmente confusa. A troca de Primeira Guerra Mundial por anos 80 neon parecia mais uma decisão de marketing do que narrativa — como se alguém tivesse assistido ‘Stranger Things’ e decidido que nostalgia bastava como substituto de roteiro.
O problema não era Gal Gadot, que continuava carismática. Era um roteiro que não sabia o que queria ser — comédia romântica com Steve Trevor ressuscitado? Crítica ao consumismo reaganista? Aventura de ação com vilões caricatos? O filme tentava tudo e não conseguia nada direito. A cena final, com Diana transmitindo um discurso para o mundo inteiro, tinha a sutileza de um comercial de refrigerante.
Mas aqui está o detalhe que Hollywood parece ignorar: ‘Mulher-Maravilha 1984’ não fracassou porque tinha uma protagonista feminina. Fracassou pelos mesmos motivos que fazem qualquer sequência fracassar — excesso de confiança, perda de foco, tentativa de replicar sucesso sem entender o que o causou. ‘Thor: O Mundo Sombrio’ teve os mesmos problemas e ninguém sugeriu abandonar heróis nórdicos.
A Marvel e sua relação complicada com protagonistas femininas
Natasha Romanoff apareceu pela primeira vez em ‘Homem de Ferro 2’, em 2010. Seu filme solo chegou em 2021 — onze anos depois, e postumamente dentro da cronologia do MCU. Ela já estava morta em ‘Vingadores: Ultimato’. A mensagem implícita era clara: heroínas são ótimas como coadjuvantes, mas protagonistas? Isso pode esperar.
‘Viúva Negra’ acabou sendo um filme competente, com Florence Pugh roubando cenas como Yelena Belova e oferecendo o tipo de energia sardônica que o MCU precisava. A sequência de abertura, com créditos sobre imagens de tráfico humano ao som de uma versão sombria de “Smells Like Teen Spirit”, era mais ousada do que qualquer coisa que a Marvel havia feito. Mas é impossível assistir sem pensar no que poderia ter sido se Scarlett Johansson tivesse recebido esse tratamento uma década antes, quando sua história ainda tinha futuro.
‘Capitã Marvel’ chegou em 2019 e arrecadou 1,1 bilhão de dólares. Brie Larson enfrentou uma campanha de ódio online desproporcional — review bombing coordenado antes mesmo do filme estrear — mas o público votou com ingressos. O filme tinha problemas: Carol Danvers era menos desenvolvida que Goose, seu gato alienígena, e a estrutura de memória fragmentada criava distância emocional. Mas funcionava como introdução e, crucialmente, como setup para ‘Vingadores: Ultimato’.
O caso ‘As Marvels’: quando três heroínas não bastam
A sequência de ‘Capitã Marvel’ chegou em 2023 com uma proposta interessante: reunir Carol Danvers, Monica Rambeau (de ‘WandaVision’) e Kamala Khan (de ‘Ms. Marvel’) em uma aventura que misturava ação com momentos genuinamente divertidos — incluindo um número musical no planeta Aladna que pegou todo mundo de surpresa e dividiu opiniões.
Iman Vellani, como Kamala, era a alma do filme. Sua energia de fã que finalmente conhece seu ídolo funcionava como proxy para a audiência. Teyonah Parris trazia peso emocional ao lidar com ressentimento materno. Brie Larson finalmente parecia relaxada no papel, permitindo que Carol fosse falha e engraçada. A química entre as três funcionava — especialmente na mecânica de troca de lugares que gerava tanto comédia quanto ação inventiva.
O problema? Quase ninguém foi ver. ‘As Marvels’ arrecadou 206 milhões — o menor número do MCU desde o primeiro ‘Hulk’ — e as explicações são múltiplas: fadiga de franquia após uma Fase 4 irregular, necessidade de ter assistido duas séries do Disney+ para entender contextos, marketing que não conseguia comunicar o tom do filme. Mas o resultado prático foi o mesmo de sempre — mais um dado para quem quer argumentar que “heroínas não vendem”.
O que essa narrativa ignora: ‘As Marvels’ chegou em um momento de exaustão generalizada com o MCU. ‘Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania’, com protagonista masculino, havia fracassado meses antes com recepção ainda pior. ‘Eternos’, com elenco misto, também decepcionou. O problema era a franquia saturada, não o gênero das protagonistas.
As exceções que provam a regra (ou deveriam)
‘Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa’ fez algo raro: transformou um personagem de ‘Esquadrão Suicida’ — um filme quase universalmente criticado — em protagonista de um filme que críticos e audiências genuinamente curtiram. Margot Robbie, também produtora, entendia Harley Quinn de uma forma que o roteiro original nunca permitiu explorar: caótica mas vulnerável, violenta mas leal, completamente maluca mas emocionalmente coerente.
A cena no corredor da delegacia, com Harley nocauteando policiais enquanto patina em evidências, é o tipo de sequência de ação que deveria ter virado referência. Cathy Yan e o coreógrafo Jon Valera criaram algo que parecia saído de um musical violento — cada movimento tinha personalidade, cada queda tinha timing cômico. O filme não fez o dinheiro que merecia (201 milhões contra orçamento de 84), mas deixou marca suficiente para justificar o retorno da personagem.
‘The Old Guard’, na Netflix, provou que heroínas funcionam fora do duopólio Marvel/DC. Charlize Theron como Andy — uma imortal cansada de séculos de violência — entregou o tipo de performance que eleva material de gênero. Há uma cena em que ela simplesmente olha para uma parede, e você sente o peso de milênios. O filme foi um dos maiores sucessos da plataforma em 2020 e garantiu sequência.
‘Wakanda para Sempre’ e o heroísmo nascido da tragédia
O filme nunca deveria ter sido sobre Shuri assumindo o manto. A morte de Chadwick Boseman forçou uma reconfiguração completa, e Ryan Coogler transformou limitação em força. Letitia Wright carregou o peso de um luto real — do personagem e do ator — e entregou uma performance que oscilava entre raiva e devastação de forma que sentia genuína, não manipulativa.
Angela Bassett, como Rainha Ramonda, entregou cenas que renderam indicação ao Oscar — a primeira para uma atriz em filme de super-heróis. O momento em que ela confronta as Nações Unidas, recusando ajuda após terem ignorado Wakanda, tinha uma dignidade furiosa que transcendia o gênero. Danai Gurira continuou provando que Okoye merece seu próprio filme. O elenco feminino de Wakanda não era concessão — era a espinha dorsal de uma das franquias mais lucrativas da Marvel.
O filme arrecadou 859 milhões de dólares. Críticas foram majoritariamente positivas. E ainda assim, a lição parece não ter sido absorvida de forma sistemática.
‘Thunderbolts*’ e Yelena Belova como centro gravitacional
O mais recente exemplo de protagonismo feminino no MCU chegou em 2025 com ‘Thunderbolts*’. Em teoria, é um filme de equipe. Na prática, Florence Pugh como Yelena Belova é inequivocamente a protagonista — a primeira personagem que vemos, a âncora emocional de toda a narrativa, a cola que mantém um grupo de anti-heróis funcionando como algo além de piadas e pancadaria.
A cena em que Yelena desmorona emocionalmente diante de Alexei (David Harbour) é o tipo de momento que raramente heroínas recebem em filmes de ação. Ela não chora de forma cinematográfica — ela soluça, perde o controle, parece genuinamente quebrada. Vulnerabilidade tratada como força, não como fraqueza. Pugh entende que Yelena funciona justamente porque não tenta ser invulnerável — ela é abertamente danificada e segue em frente mesmo assim.
O filme também lida com depressão de forma surpreendentemente honesta para um blockbuster da Disney. E é Yelena quem conduz essas conversas, quem conecta com Bob (Lewis Pullman), quem oferece empatia em um gênero que costuma resolver problemas com socos. É uma evolução silenciosa mas significativa para filmes de super-heroínas dentro do MCU.
O problema não é o público — é quem decide o que o público quer
A matemática é simples: quando Hollywood investe em filmes de super-heroínas com o mesmo cuidado que dedica a heróis masculinos, eles funcionam. ‘Mulher-Maravilha’ funcionou. ‘Capitã Marvel’ funcionou. ‘Wakanda para Sempre’ funcionou. Quando o investimento é menor, quando o roteiro é descartável, quando a direção é genérica — aí sim, eles fracassam. Exatamente como qualquer filme fracassa nessas condições.
O trailer de ‘Supergirl: Woman of Tomorrow’ para 2026 reacendeu esperanças — Milly Alcock parece trazer a intensidade que o material de Tom King exige. Mas a história sugere cautela. Hollywood tem memória curta para sucessos femininos e memória longa para fracassos. Um ‘Madame Teia’ ruim pesa mais na balança executiva do que três ‘Mulher-Maravilha’ bons.
A questão não é se audiências querem heroínas. Elas já provaram que querem, repetidamente, com dinheiro. A questão é se os estúdios vão continuar tratando protagonistas femininas como experimentos arriscados em vez do que realmente são: oportunidades inexploradas em um gênero que há décadas recicla as mesmas histórias masculinas.
Enquanto essa mentalidade não mudar, continuaremos presos nesse ciclo: sucesso feminino tratado como exceção, fracasso feminino tratado como regra. E o cinema de super-heróis continuará menor do que poderia ser.
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Perguntas Frequentes sobre Filmes de Super-Heroínas
Qual foi o primeiro filme de super-heroína de sucesso?
‘Mulher-Maravilha’ (2017) é considerado o primeiro grande sucesso comercial e crítico do gênero, arrecadando 822 milhões de dólares e alcançando 93% no Rotten Tomatoes. Antes dele, ‘Supergirl’ (1984) e ‘Mulher-Gato’ (2004) haviam fracassado.
Qual filme de super-heroína mais arrecadou na bilheteria?
‘Capitã Marvel’ (2019) lidera com 1,128 bilhão de dólares em bilheteria mundial, tornando-se o primeiro filme solo de super-heroína a ultrapassar a marca de um bilhão.
Por que demorou tanto para a Marvel fazer um filme de Viúva Negra?
Apesar de Natasha Romanoff ter estreado em 2010, seu filme solo só chegou em 2021. A Marvel priorizou heróis masculinos durante a construção do MCU, e executivos da época consideravam filmes femininos “arriscados” — uma posição que ‘Mulher-Maravilha’ e ‘Capitã Marvel’ provaram estar errada.
Quais filmes de super-heroínas estão previstos para os próximos anos?
‘Supergirl: Woman of Tomorrow’ está confirmado para 2026 como parte do novo DCU de James Gunn, com Milly Alcock no papel principal. A Marvel ainda não anunciou novos filmes solo femininos após ‘Thunderbolts*’.
Por que ‘As Marvels’ fracassou na bilheteria?
O filme sofreu com fadiga de franquia do MCU, necessidade de ter assistido séries do Disney+ para contexto completo, e um momento de saturação do mercado. Filmes masculinos do MCU no mesmo período, como ‘Quantumania’, também tiveram desempenho abaixo do esperado.

