Box ‘Emmanuelle’ da Severin trata erotismo como cinema de verdade

O novo box 4K da Severin Films reúne os quatro primeiros filmes de ‘Emmanuelle’ com restaurações impecáveis e um livro de 128 páginas de ensaios acadêmicos. Analisamos por que este lançamento finalmente trata cinema erótico como objeto de estudo sério — e o que isso revela sobre nosso desconforto histórico com desejo feminino na tela.

Existe uma categoria de cinema que a história tratou com condescendência sistemática: o erotismo. Nem explícito o suficiente para os que buscam pornografia, nem “respeitável” o bastante para a crítica tradicional, filmes como ‘Emmanuelle’ passaram décadas num limbo cultural — reconhecidos pelo impacto comercial, mas raramente pela ambição artística. O novo Emmanuelle box set da Severin Films, batizado de ‘Saga Erotica: The Emmanuelle Collection’, tenta corrigir essa injustiça histórica. E faz isso com uma seriedade que, francamente, poucos esperavam.

Lançado em 6 de dezembro, o box reúne os quatro primeiros filmes da franquia em restaurações 4K, acompanhados de um arsenal de materiais extras que inclui comentários, featurettes e um livro de 128 páginas com ensaios acadêmicos. Não é apenas uma edição de colecionador. É uma declaração de intenções: esses filmes merecem ser estudados, não apenas consumidos.

Por que ‘Emmanuelle’ importa mais do que você imagina

Por que 'Emmanuelle' importa mais do que você imagina

Quando Just Jaeckin adaptou o romance de Emmanuelle Arsan em 1974, ele não estava apenas fazendo um filme erótico. Estava testando uma hipótese: é possível contar uma história sobre seres sexuais que estimule a mente tanto quanto o corpo? O sucesso comercial provou que sim — a franquia gerou mais de 100 filmes ao longo de cinco décadas. Mas o reconhecimento artístico? Esse demorou meio século para chegar.

David Gregory, cofundador da Severin e veterano em restaurações de gênero, lembra de uma viagem a Paris que mudou sua perspectiva. Ao entrevistar Jaeckin e o produtor Yves Rousset-Rouard para um DVD anterior, ele percebeu algo que a crítica francesa preferia ignorar: ‘Emmanuelle’ era uma obra-prima não reconhecida do cinema francês. “Frequentemente é jogado na lata de lixo cultural”, disse Gregory. “Particularmente na França, onde eles não gostam de apoiar o que não consideram alta arte.”

A ironia é deliciosa. O país que inventou a Nouvelle Vague e celebra a transgressão artística tem vergonha de um dos seus maiores sucessos de exportação cultural.

Gillian Horvat e a curadoria que o material exigia

A escolha de Gillian Horvat Wallace como produtora do set não foi acidental. Cineasta com indicação ao Independent Spirit Award por ‘I Blame Society’ (2022) e estudiosa de cinema de gênero, Horvat trouxe exatamente o que o projeto precisava: rigor acadêmico sem puritanismo, entusiasmo sem ingenuidade.

Sua entrada no universo do erotismo cinematográfico veio através de ‘The Opening of Misty Beethoven’, considerado um dos filmes pornográficos mais artisticamente legítimos já feitos. “Eu não fazia ideia de que pornografia era feita assim”, ela conta. “Com histórias, valores de produção, ambição, sátira.” Quando soube que a Severin trabalharia em títulos adultos, se ofereceu. A resposta de Kier-La Janisse, produtora veterana da distribuidora, foi pragmática: “Adoraríamos ter mulheres produtoras nos títulos adultos.”

Horvat resiste à ideia de que sua presença funciona como escudo contra críticas. “Posso ver como algumas pessoas podem pensar que contratar uma produtora mulher é colocar uma barba no cinema exploratório”, admite. “Mas eu genuinamente acho esses filmes intrigantes.”

Contextualizando o problemático sem cancelar o artístico

Contextualizando o problemático sem cancelar o artístico

Aqui está o que diferencia este box de uma simples remasterização: ele não finge que os filmes envelheceram perfeitamente. Horvat foi direta sobre sua abordagem. “Eu queria passar por tudo que é sensacionalista e problemático no filme e olhar de ambos os pontos de vista — reconhecendo o que é atraente, o que é problemático, interrogando a intenção por trás e o contexto histórico.”

Um exemplo concreto: ‘Emmanuelle 2’ contém uma digressão etnográfica sobre rituais tribais de Bali, inserida entre as duas principais cenas eróticas. Em vez de ignorar ou condenar, o box inclui um ensaio visual da professora Jen Moorman (Fordham University) explicando por que os figurinos parecem dos anos 1930 — era uma escolha deliberada para evocar um período anterior às tensões coloniais entre França e Sudeste Asiático.

Esse tipo de análise não desculpa nada. Mas ilumina. E iluminação é o que separa preservação de mera nostalgia.

Emmanuelle como James Bond de saias

Uma das teses mais provocativas do material extra posiciona a protagonista como uma versão softcore de James Bond. Horvat explica: “Ela é uma globe-trotter. Vai da Tailândia a Hong Kong, depois às Seychelles — e contextualizamos qual era a relação política da França com cada um desses países.”

A comparação funciona em múltiplos níveis. Ambos são fantasias de mobilidade e acesso — sexual no caso de Emmanuelle, de poder no caso de Bond. Ambos navegam geopolítica através de encontros íntimos. A diferença é que Bond virou cânone cultural enquanto Emmanuelle virou piada de programa de TV a cabo.

O box set argumenta, com evidências, que essa discrepância diz mais sobre nosso desconforto com desejo feminino do que sobre qualidade cinematográfica.

O testemunho de leito de morte de Francis Giacobetti

O testemunho de leito de morte de Francis Giacobetti

Entre os materiais extras, um se destaca pela circunstância extraordinária de sua produção. Francis Giacobetti — o fotógrafo que criou o icônico pôster de ‘Emmanuelle’ antes de ser convidado a dirigir a sequência — concedeu uma entrevista de áudio pouco antes de morrer, em junho de 2025, aos 85 anos.

Gregory revela o contexto: “O entrevistador apareceu no local com sua câmera, e era um hospital. Não sei se ele sabia disso antes de chegar, mas Giacobetti estava na cama de hospital onde faleceria poucos dias depois.”

O resultado é um documento sem filtros. Giacobetti não poupa críticas a Sylvia Kristel, ao produtor Rousset-Rouard, nem à própria experiência de direção — que odiou tanto que nunca mais quis dirigir. Horvat descreve como “apontamento de dedos no leito de morte”, um contraponto fascinante às outras entrevistas do set onde os mesmos eventos são narrados de perspectivas completamente diferentes.

É o tipo de material que transforma um box set em documento histórico.

Sylvia Kristel finalmente reconhecida como atriz

Se há uma injustiça que este lançamento tenta reparar, é o tratamento dado a Sylvia Kristel. A atriz holandesa passou décadas sendo reduzida a “a mulher de Emmanuelle” — como se o papel a tivesse consumido em vez de lançado. Gregory, que a entrevistou em Amsterdã para o DVD de 2007, sempre soube que havia mais.

“Ela pessoalmente foi deixada de lado como a atriz que era Emmanuelle, em vez da atriz que ela é e da pessoa muito inteligente que ela é”, lamenta. O novo box dedica espaço significativo à sua biografia, carreira posterior e vida como artista — não apenas como símbolo sexual de uma era.

Kristel morreu em 2012. Esse reconhecimento chega tarde, mas chega.

Para quem é este box (e para quem não é)

Vou ser direto: se você busca apenas nostalgia erótica ou material para uma noite específica, existem opções mais baratas e diretas. Este Emmanuelle box set é para quem quer entender por que esses filmes existiram, o que representaram culturalmente e como envelheceram — bem e mal.

É para o cinéfilo que aceita que gêneros “menores” podem ter ambição artística. Para o estudioso de cultura pop que quer ver análise séria aplicada a material frequentemente descartado. Para quem acredita que preservação cinematográfica não deveria ser seletiva baseada em respeitabilidade.

Horvat resume melhor do que eu conseguiria: “É realmente recompensador poder fazer estudos sobre eles e dar uma contextualização pós-‘me too’ completa que reconhece as condições de produção, enquanto também valoriza a qualidade artística — e a capacidade de dar prazer.”

Cinema erótico como objeto de estudo sério. Quem diria que precisávamos esperar 50 anos para isso parecer óbvio?

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Perguntas Frequentes sobre o Box ‘Emmanuelle’ da Severin

Quais filmes estão incluídos no Emmanuelle box set da Severin?

O box ‘Saga Erotica: The Emmanuelle Collection’ inclui os quatro primeiros filmes da franquia: ‘Emmanuelle’ (1974), ‘Emmanuelle 2’ (1975), ‘Goodbye Emmanuelle’ (1977) e ‘Emmanuelle 4’ (1984), todos em restaurações 4K UHD.

O que vem de extras no box ‘Emmanuelle’ da Severin Films?

Além dos filmes restaurados, o box inclui comentários em áudio, featurettes sobre a produção, entrevistas com membros da equipe original e um livro encadernado de 128 páginas com ensaios acadêmicos contextualizando os filmes histórica e culturalmente.

Onde comprar o Emmanuelle box set da Severin?

O box está disponível diretamente no site da Severin Films e em varejistas especializados em mídia física como DiabolikDVD e Grindhouse Video. Por ser edição limitada, a disponibilidade pode variar.

O box ‘Emmanuelle’ da Severin tem legendas em português?

Não. O lançamento da Severin Films é focado no mercado anglófono e inclui legendas em inglês. Não há legendas em português incluídas nesta edição.

Vale a pena o Emmanuelle box set para quem nunca viu os filmes?

Sim, especialmente se você tem interesse em história do cinema ou estudos culturais. Os materiais extras contextualizam os filmes de forma que mesmo espectadores novatos conseguem apreciar o significado histórico além do conteúdo erótico.

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Marina Souza
Marina Souza
Oi! Eu sou a Marina, redatora aqui do Cinepoca. Desde os tempos de criança, quando as tardes eram preenchidas por maratonas de clássicos da Disney em VHS e as noites por filmes de terror que me faziam espiar por entre os dedos, o cinema se tornou um portal para incontáveis realidades. Não importa o gênero, o que sempre me atraiu foi a capacidade de um filme de transportar, provocar e, acima de tudo, contar algo.No Cinepoca, busco compartilhar essa paixão, destrinchando o que há de mais interessante no cinema, seja um blockbuster que domina as bilheterias ou um filme independente que mal chegou aos circuitos.Minhas expertises são vastas, mas tenho um carinho especial por filmes que exploram a complexidade da mente humana, como os suspenses psicológicos que te prendem do início ao fim. Meu objetivo é te levar em uma viagem cinematográfica, apresentando filmes que talvez você nunca tenha visto, mas que definitivamente merecem sua atenção.

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