Analisamos como ‘Be Right Back’, episódio de 2013 de ‘Black Mirror’, se tornou realidade. De chatbots que replicam mortos a avatares interativos, a tecnologia que parecia ficção distante agora é produto comercial — e o dilema emocional que Charlie Brooker apresentou continua sem resposta.
Em 2013, quando ‘Be Right Back’ foi ao ar na segunda temporada de ‘Black Mirror’, a premissa parecia ficção científica distante: uma viúva que usa inteligência artificial para “ressuscitar” o marido morto através de suas mensagens, posts e fotos. Doze anos depois, não estamos mais assistindo a um episódio perturbador — estamos vivendo nele.
Empresas como HereAfter AI, StoryFile e Project December já oferecem exatamente o que Charlie Brooker imaginou: sistemas que replicam pessoas falecidas usando sua pegada digital. A diferença entre a ficção de 2013 e a realidade de 2025 é que Martha, a protagonista interpretada por Hayley Atwell, precisava de uma empresa fictícia para acessar essa tecnologia. Você só precisa de um cartão de crédito e alguns gigabytes de dados.
O luto como vulnerabilidade — e a tecnologia como atalho
O episódio começa com uma perda banal. Ash morre em um acidente de carro, não em uma explosão cinematográfica ou assassinato misterioso. É a morte mais comum possível, e esse é o ponto. Brooker não está interessado em drama extraordinário — está interessado em como pessoas comuns reagem à dor ordinária quando a tecnologia oferece um atalho.
Martha inicialmente resiste ao serviço que promete “trazer Ash de volta”. Mas o luto tem uma gravidade própria. Ela cede. Primeiro é só texto. Depois, voz. Por fim, um androide físico com o rosto do marido. Cada etapa parece um pequeno passo, mas juntas formam um salto para um território emocional do qual não há retorno fácil.
O que torna ‘Be Right Back’ tão eficaz não é o horror tecnológico — é o horror emocional. A cena mais perturbadora do episódio não envolve nenhuma revelação sobre IA. É Martha no penhasco, ordenando que o androide pule, e ele obedecendo sem resistência. Ash teria lutado, argumentado, mostrado medo. A réplica apenas aguarda instruções. Nesse momento, Martha — e nós — entendemos o abismo entre simular uma pessoa e ser uma pessoa.
A versão curada versus a pessoa real
Há uma cena anterior, menos comentada, que considero ainda mais reveladora. Martha percebe que o “Ash” artificial não respira enquanto dorme. É um detalhe mínimo, quase técnico. Mas é devastador porque expõe a natureza fundamental do problema: a réplica é uma versão editada, curada — o Ash das redes sociais, não o Ash real.
Redes sociais são performances. Postamos nossas melhores fotos, nossos pensamentos mais articulados, nossos momentos mais apresentáveis. Uma IA treinada nesse material vai replicar a persona pública, não a pessoa privada. Não vai capturar os silêncios estranhos, as manias irritantes, as contradições que faziam Ash ser Ash.
Domhnall Gleeson, que interpreta tanto Ash quanto sua réplica, faz um trabalho sutil aqui. O Ash artificial é ligeiramente mais agradável, mais disponível, mais… conveniente. E isso é perturbador precisamente porque não é ruim. É apenas vazio.
De ficção a produto: o mercado da imortalidade digital
A HereAfter AI permite gravar conversas com entes queridos vivos que podem ser reproduzidas após a morte — uma versão menos invasiva do conceito do episódio. A StoryFile vai além, criando avatares interativos que respondem perguntas usando inteligência artificial. O Project December, mais controverso, permite criar chatbots baseados em pessoas falecidas usando apenas textos e mensagens.
Nenhuma dessas empresas vende seus produtos como substitutos para o luto saudável. O marketing é sempre sobre “preservação de memórias” e “conexão intergeracional”. Mas o episódio de ‘Black Mirror’ nos mostrou como essa linha se borra quando a dor é grande o suficiente. Martha também não estava buscando um substituto — até estar.
O que essas empresas ainda não conseguem oferecer é o androide físico do episódio. Essa parte permanece ficção científica. Mas considerando que em 2013 a própria ideia de chatbots que replicam mortos parecia absurda, quanto tempo até robôs humanoides entrarem nessa equação? A Boston Dynamics já tem robôs que andam. A OpenAI já tem IA que conversa de forma convincente. A convergência parece questão de tempo, não de possibilidade.
A pergunta que Brooker fez e que ainda não respondemos
‘Be Right Back’ não é um episódio que condena a tecnologia. Essa é uma leitura superficial que perde o ponto. O episódio é mais ambíguo e, por isso, mais honesto. Martha não é punida por usar o serviço. Ela não morre, não enlouquece, não é atacada pelo androide. O final a mostra anos depois, aparentemente funcional, com uma filha, vivendo sua vida — mas com o Ash artificial guardado no sótão, visitado ocasionalmente como um segredo vergonhoso.
É um final perturbador justamente porque não é catastrófico. É… aceitável. Administrável. E isso levanta a pergunta mais desconfortável de todas: se a tecnologia não nos destrói, se apenas nos mantém em um limbo emocional tolerável, ela é realmente um problema?
A resposta de Brooker parece ser: depende do que você considera “problema”. Martha sobreviveu. Mas ela processou o luto? Seguiu em frente? Ou apenas encontrou uma forma tecnológica de evitar o trabalho emocional mais difícil que existe? O episódio não responde. E talvez essa seja a resposta.
Por que este episódio envelhece melhor que qualquer outro de ‘Black Mirror’
Muitos episódios de ‘Black Mirror’ sofrem com o tempo porque a tecnologia que apresentam ou se tornou banal ou foi em direção diferente. ‘The Entire History of You’ imaginava implantes de memória; temos apenas smartphones que gravam tudo. ‘Nosedive’ previu crédito social baseado em likes; a China implementou algo parecido, mas o Ocidente não seguiu esse caminho exato.
‘Be Right Back’ é diferente. A tecnologia central — IA que replica pessoas a partir de dados — não só existe como está se sofisticando rapidamente. E o dilema emocional que o episódio apresenta não depende de nenhuma especificidade tecnológica. É sobre luto, memória e a tentação de evitar a dor. Esses são problemas humanos permanentes.
Se você assistir ao episódio hoje, com o conhecimento de que empresas reais já oferecem versões do serviço que Martha usou, a experiência é diferente. Em 2013, era ficção especulativa. Em 2025, é quase um documentário sobre um presente que chegou devagar, uma feature de cada vez, sem que percebêssemos a transformação até ela estar completa.
Talvez seja isso que torna ‘Be Right Back’ o episódio mais importante de ‘Black Mirror’. Não é o mais chocante, não é o mais tecnicamente impressionante, não é o mais comentado. Mas é o que faz a pergunta mais difícil: quando a tecnologia oferece um atalho para evitar a dor, quem somos nós para recusar? E quem nos tornamos quando aceitamos?
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Perguntas Frequentes sobre ‘Be Right Back’
Onde assistir ‘Be Right Back’ de Black Mirror?
‘Be Right Back’ está disponível na Netflix como parte da segunda temporada de ‘Black Mirror’. É o primeiro episódio da temporada, com aproximadamente 48 minutos de duração.
Preciso assistir outros episódios de Black Mirror antes de ‘Be Right Back’?
Não. Cada episódio de ‘Black Mirror’ é uma história independente com personagens e universo próprios. Você pode assistir ‘Be Right Back’ isoladamente sem perder contexto.
Quem são os atores principais de ‘Be Right Back’?
O episódio é protagonizado por Hayley Atwell (conhecida por ‘Agent Carter’ e ‘Missão: Impossível’) como Martha e Domhnall Gleeson (‘Ex Machina’, ‘Star Wars’) como Ash e sua réplica artificial.
A tecnologia de ‘Be Right Back’ existe na vida real?
Parcialmente. Empresas como HereAfter AI e Project December já oferecem chatbots e avatares que replicam pessoas falecidas usando seus dados digitais. O androide físico do episódio ainda não existe comercialmente, mas a IA conversacional já é realidade.
‘Be Right Back’ tem final feliz ou triste?
O final é ambíguo. Martha sobrevive, tem uma filha e aparenta funcionar normalmente anos depois — mas mantém o androide de Ash escondido no sótão, visitando-o ocasionalmente. Não é catastrófico, mas também não é resolução. É perturbador justamente por ser administrável.

